A advogada autodeclarada simpatizante do presidente Jair Bolsonaro, Adelaide Rossini de Jesus, foi condenada pela Justiça a pagar mais de 10 salários mínimos de indenização por dano moral ao médico a quem chamou de “comunista” por ele se recusar a prescrever-lhe cloroquina para combater “frio e tosse seca”.
Mais que isso, ela publicou seus queixumes no Facebook, dando nome e número de CRM do médico, reclamando que ele lhe recusou cloroquina. Por isso, a reclamante virou ré.
Em sua sentença, o juiz Guilherme de Macedo Soares, da 2ª Vara do Juizado Especial Cível de Santos, não só estipulou indenização por dano moral em 10 salários mínimos ao médico como decidiu pedir desculpas aos profissionais de saúde, em nome da ré. A ação tramita na Justiça sob número 1010084-11.2020.8.26.0562.
Macedo Soares pontuou em sua decisão: “A ré infelizmente não teve a sensibilidade de entender que o momento não se presta para hostilizar os profissionais da saúde, muito pelo contrário, deveriam ser tratados como heróis, pois, assim o são”.
Em outra altura de sua decisão, ponderou que a sociedade está contaminada pelo Efeito Dunning-Kruger: quanto menos uma pessoa sabe, mais ela acha que sabe.
E em nome da sociedade e da própria ré, pediu desculpas aos profissionais de saúde, que “arriscam suas vidas e as vidas daquelas pessoas que eles mais amam para combater a doença alheia. Estão na linha de frente, prontos para o ‘que der e vier’, e lamentavelmente ainda precisam passar por situações como essa. A sociedade precisaria se juntar e pedir desculpas em nome da ré, a começar por este julgador: RECEBA MINHAS SINCERAS DESCULPAS!” — escreveu o juiz em letras maiúsculas.
O começo da história
Em 26 de maio de 2020, o médico estava de plantão no Pronto Socorro do Hospital Ana Costa, em Santos–SP. Chegou uma senhora, paciente que reclamava de frio e tosse seca. Tratava-se da advogada Adelaide Rossini de Jesus.
Apesar dos sintomas, ela relatou não ter interesse em fazer o teste para Covid-19 e pediu ao médico que lhe prescrevesse Cloroquina e Azitromicina.
Após examiná-la e concluir que a paciente apresentava sinais vitais dentro dos parâmetros de normalidade, o médico solicitou um eletrocardiograma.
Contrariada, a paciente fixou-se na ideia de que precisava do ‘tratamento precoce’ para a Covid-19 e que apenas desejava “tomar o remédio do presidente”.
Ela insistiu que o médico devia lhe prescrever Cloroquina e Azitromicina como forma profilática de tratamento à Covid-19 e até se propôs a assinar algo como um termo de consentimento.
O médico elucidou para a paciente que diante do quadro clínico dela, cujos sintomas não indicavam desenvolvimento da Covid-19, e face à ausência de comprovação de eficácia científica de tratamento precoce para a doença, ele não se sentia confortável para prescrever aqueles medicamentos.
Para corroborar seu ponto-de-vista médico, ele chamou cinco colegas de hospital. Todos os cinco foram unânimes ao afirmar que, em razão de a paciente ter quase 80 anos, ela correria risco de sofrer os efeitos colaterais da medicação — até morte súbita durante a noite — caso o desejo dela de ter esses remédios fosse atendido
Pagar e receber de graça
Após a explicação dos cinco médicos, a mulher ficou ainda mais nervosa, irritada e exaltada.
Disse ser advogada, ameaçou o médico de processo, reportando que o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tomava e recomendava cloroquina e que “o presidente do Brasil havia autorizado seu uso”.
Durante a consulta no pronto-socorro pegou seu celular e passou a ligar para diversas pessoas, afirmando aos interlocutores nos telefonemas que os médicos do PS “eram comunistas”.
Por se recusar a outro tratamento que não fosse a “receita do Bolsonaro” e insistir que faria um boletim de ocorrência, o plantonista encerrou o atendimento, dizendo que a prescrição de medicamentos é critério do médico, segundo orientação do Ministério da Saúde.
Inconformada com a consulta, da qual saiu sem a cloroquina, a advogada fez, no dia seguinte, uma postagem no Facebook em que, ressaltando sua condição de paciente particular, reiterava a qualificação de “médico comunista”, porém incluindo nome e CRM do profissional.
“Cheguei à seguinte conclusão: Se onde estou pagando não me receitam, imagine onde devem dar de graça. ASSIM AS PESSOAS CONTINUAM MORRENDO POR NÃO ESTAREM TOMANDO O REMÉDIO CORRETO! ”, publicou assim mesmo em letras maiúsculas.
Em sua postagem, a advogada, embora conhecedora das leis, não esclareceu que nenhum cidadão recebe nada “de graça”. O Sistema Único de Saúde (SUS) é sustentado por todos os cidadãos, no pagamento de impostos diretos e indiretos.
Ainda na mesma na postagem, ela anexou reportagem que tratava do número de mortes por Covid-19 no país, torcendo a argumentação de modo dar a entender que as mortes resultavam da recusa de médicos em prescrever a cloroquina.
Virada
Neste ponto da situação, tomando conhecimento da postagem, foi o médico quem registrou ocorrência, ao entender que a mulher o acusava nas redes sociais de omissão de socorro.
À Justiça, a paciente-advogada disse jamais ter se recusado a fazer o teste de Covid-19, mas que queria apenas começar a usar os remédios com acompanhamento médico. Admitiu que anunciara no Pronto-socorro que ia levar o caso à polícia, mas para preservação de seus direitos, “pois se viesse a falecer da doença seus 3 filhos, que são advogados, iriam buscar seus direitos na Justiça”.
Liberdade de expressão nos limites da lei
Em sua peça, a causídica Adelaide Rossini de Jesus — ignorando todas as pesquisas científicas já feitas e seus reportes dados a público — argumenta que o remédio do Bolsonaro salvaria vidas.
“PESSOAS HAVIAM MORRIDO BERRANDO QUE QUERIAM TOMAR O REMÉDIO DO BOLSONARO” — advertiu novamente em maiúsculas ao juiz.
Rossini de Jesus também afirmou sem nenhum apoio documental que nos “estados [do Brasil] em que a medicação está em uso a queda de óbitos foi muito grande”.
Ela assinalou, ainda em maiúsculas, usando de sofisma e escorregando na conjugação verbal, que se alguém precisa “entrar na JUSTIÇA PARA RECLAMAR DE QUEM SIMPLESMENTE QUIS FAZER VALER SEU DIREITO DE TENTAR SALVAR SUA PRÓPRIA VIDA E ALERTOU SEUS AMIGOS COM RELAÇÃO A ISSO, REALMENTE ESTAMOS NUMA DITADURA ONDE NOSSOS PENSAMENTOS E CRENÇAS NÃO PODEM MAIS SEREM EXPOSTOS”. (sic)
Invocando ainda seu o direito à liberdade de expressão e à crítica, apontou que se o médico “se sentiu acuado por uma velhinha de quase 80 anos”, ela se desculpava e acrescentou que em nenhum momento houve qualquer ofensa à imagem ou à honra do médico. E voltou a dizer que governadores oposicionistas estão desviando verba federal e escondendo a cloroquina só para desacreditar o presidente.
Na sua decisão, o juiz Guilherme de Macedo Soares garantiu que a liberdade de expressão e crítica era garantia constitucional. “E não há nada de errado nisto, eis que o Estado Democrático de Direito em que vivemos permite a qualquer pessoa expressar sua opinião política, dentro dos limites que a lei autoriza. E é exatamente a extrapolação dos limites que dá causa ao presente processo”.
No Brasil não há debate saudável
Em sua análise do caso, o juiz Guilherme de Macedo Soares também lamentou “a atual situação do Brasil”, em que não há mais “debate saudável de ideias, mas de ataques grotescos e recíprocos, recheados de ofensas, intolerância e ódio, fomentados diariamente por blogueiros de ambas as vertentes, que usualmente espalham as chamadas fake news”.
Ele afirmou que não restar dúvida de que a advogada era pessoa de “ferrenha posição política”, o que transparece mesmo na contestação a ele, nos autos do processo, bem como nas publicações que ela faz nas redes sociais. O que era legítimo no Estado Democrático de Direito, desde que “dentro dos limites que a lei autoriza”.
O magistrado relatou ter visitado o perfil da requerida no Facebook, na ocasião da prolação da sentença, mas que foi inviável chegar até a data da publicação referida na disputa.
Depois de explicar que mesmo a liberdade de expressão e limitada pelo que lei permite, Macedo Soares afirmou que não entraria no mérito da eficácia dos medicamentos contra a Covid-19, mas ressaltou que a” comunidade científica descartou o uso da cloroquina, incluindo o francês Didier Raoult”.
O médico francês Didier Raoult foi quem deu início à defesa da cloroquina e hidroxicloroquina para uso off-label em Covid-19, mas logo descartou o uso para tal fim.
O magistrado também citou outras rejeições científicas a tal uso da cloroquina: a Apsen, maior fabricante do fármaco no país, bem como o hospital Albert Einstein, que fora mencionado pela própria advogada Adelaide como “hospital de referência” onde ela teria “tratamento adequado”.
Efeito Dunning-Kruger
O juiz afirmou que dois pontos importantes teriam de ser apontados.
O primeiro deles é a supremacia da decisão do médico quanto ao tratamento a ser dado ao paciente. “É evidente que este tem a faculdade de discordar, buscar uma segunda opinião ou quantas desejar. Porém, em hipótese nenhuma pode exigir que o profissional ceda à sua opinião(...)“É incontroverso que a requerida tentou coagir o autor em seu ambiente de trabalho”.
O segundo ponto é o que é conhecido por “efeito Dunning-Kruger”.
O próprio magistrado explica o fenômeno sociológico. “É um fenômeno que leva indivíduos que possuem pouco conhecimento sobre um assunto a acreditarem saber mais que outros mais bem preparados, fazendo com que tomem decisões erradas e cheguem a resultados indevidos; é a sua incompetência que restringe sua capacidade de reconhecer os próprios erros. Estas pessoas sofrem de superioridade ilusória. ” — destacou.
Detalhe final: a ré pediu gratuidade de justiça. Após verificar ele próprio que a ré, advogada de longa data, estava trabalhando "em nada menos que 2.691 processos", o magistrado indeferiu.
Detalhe final: a ré pediu gratuidade de justiça. Após verificar ele próprio que a ré, advogada de longa data, estava trabalhando "em nada menos que 2.691 processos", o magistrado indeferiu.
0 Comentários