Em vez de se amedrontar com a prisão, mulher que participou da tentativa de golpe de estado voltou de Brasília pior do que antes. "O discurso dela inflamou ainda mais. Ela agora tem mais orgulho de ser 'patriota'", desabafa filha. A jovem bloqueou o número da mãe e seu perfil nas redes sociais para evitar contato. Recentemente, a idosa pediu, por e-mail, para passar o fim de semana com a neta de 6 anos. Ela conta que cedeu por causa da menina, que nada sabe sobre a detenção da avó
Camille Lichotti, TAB
Imagem: Adriano Machado | Reuters |
Na noite de 9 de janeiro, a produtora cultural carioca Ingryd Calazans Affonso, 35, recebeu uma mensagem da mãe, a corretora de imóveis Ana* (nome fictício), 63. “Isso é Deus, pátria e família. Brasil, sempre lutarei”, dizia o texto. Bolsonarista de primeira hora, a idosa estava detida na sede da Polícia Federal, em Brasília, depois de participar dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro.
Ingryd não se surpreendeu: Ana já havia radicalizado o discurso durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), conta, e participou de manifestações no Rio depois do segundo turno das eleições de 2022. Depois da posse de Lula (PT), a mãe também foi pedir “intervenção federal” em frente ao Comando Militar do Leste.
Ana havia viajado 15 horas de carona num carro com amigas do Rio de Janeiro a Brasília para participar dos atos. Durante a viagem, mandou fotos a Ingryd, como se estivesse de férias.
Na noite de 9 de janeiro, a segunda que passou na sede da Polícia Federal, também escreveu à filha contando que estava usando a mesma roupa, sem tomar banho. Para Ingryd, porém, não se tratava de uma reclamação, mas de um atestado de honra. “Eu só via orgulho. Orgulho por estar presa, por não estar dormindo direito, por estar com a mesma roupa, por estar ali supostamente defendendo o futuro dos filhos“.
Depois de três dias, a mãe foi liberada. A relação familiar, entretanto, nunca mais foi a mesma. Ingryd conta que, em vez de se amedrontar com a ameaça de prisão, a mãe voltou de Brasília pior do que antes. “O discurso dela inflamou ainda mais. Ela tem ainda mais orgulho de ser patriota agora. Eu sabia que ela não voltaria arrependida“.
No começo deste mês, a idosa compartilhou no Instagram um vídeo de outros manifestantes (que ela chama de “presos políticos”) sendo liberados da prisão em grupo e em clima de festa. Ao todo, 2.182 pessoas foram detidas e 294 permanecem presas; os que receberam liberdade provisória precisam usar tornozeleira eletrônica e seguir uma série de regras judiciais.
A produtora cultural bloqueou o número da mãe e seu perfil nas redes sociais para evitar contato. Recentemente, a idosa pediu, por e-mail, para passar o fim de semana com a neta de 6 anos, filha de Ingryd. Ela conta que cedeu por causa da menina, que nada sabe sobre a detenção da avó. “Quero preservar minha filha por enquanto e não acho justo afastá-la da neta“, afirma.
“Oi, amor da minha vida, a vovó está indo para Brasília“, Ana disse, num áudio durante a viagem de carro a caminho da capital federal. “Vou levar um queijo para você“.
Quando a poeira baixar…
Ingryd conta que elas tinham “um trato invisível” de não discutir política. “Sempre brigávamos”, explica ela, que descreve a mãe como uma pessoa gregária e engajada em mobilizações políticas. Em 2012, Ana se candidatou à Câmara Municipal do Rio pelo PV, mas recebeu cinco votos e não foi eleita. Segundo a filha, a idosa foi fisgada pelo discurso higienista, elitista e moralizador do bolsonarismo.
A produtora cultural acompanhou pela TV as cenas dantescas de 8 de janeiro e percebeu que a aventura da mãe “era coisa séria”. Assim que a temperatura na Esplanada subiu, e a polícia começou a fazer as primeiras prisões em flagrante, Ingryd escreveu para a mãe, perguntando se ela havia sido presa. “Estou na [penitenciária] federal de Brasília. Estamos todos presos“, dizia a resposta da mãe, seguida de um emoji de um boneco com a língua para fora.
“Eu acho que ela é sem noção, mas ela é adulta“, afirma Ingryd. “Não dá mais para ensinar minha mãe. Eu e meu irmão já tentamos ser mais incisivos, mais amigáveis, já tentamos conversar, mas ela é muito cabeça-dura“.
A filha conta que ficou preocupada, mas que decidiu “não mover uma palha para tirar ela de lá“. “Não ofereceria um centavo do meu bolso. Ela que viva com as escolhas dela“, diz.
Ingryd pretende tentar se reaproximar da mãe, que mora sozinha, “quando a poeira baixar”. Para que a rachadura familiar não seja definitiva, ela e o irmão deixaram de confrontar a mãe, e tentam, aos poucos, conversar sobre assuntos que os aproximam: samba, festas, viagens, lembranças de família — quase como uma sessão de hipnose para resgatar a vida antes do bolsonarismo.
“Acho que dar amor é a única saída. A gente quer que ela passe a velhice bem, ela já tem 63 anos. Desejo mais paz, leveza e tranquilidade para o mundo, e também para minha família. Apesar de tudo, tenho compaixão pela minha mãe“.
‘Tá cheio de gente perigosa na Papuda’
Se a mãe de Ingryd se tornou um pária no núcleo familiar, também há parentes que veem os presos de 8 de janeiro como mártires. É o caso da técnica de enfermagem Maria* (nome fictício), que pediu anonimato porque o marido, Marcos* (nome fictício), ainda está preso na Papuda, em Brasília. Ela o viu pela última vez quando ele saiu de casa, no interior de Minas Gerais, de ônibus até a capital federal.
Segundo Maria, ele não participava de nenhum grupo, era muito reservado e não expunha opiniões políticas publicamente. Ela também diz que o marido viajou sozinho e por conta própria. Na ocasião, disse que iria “pela pátria”.
Preso em flagrante, segundo as informações divulgadas pelo STF, o marido não estava assustado e acreditou que seria liberado logo porque não tinha antecedentes criminais. Avisou que receberia um habeas corpus depois da audiência de custódia e ficaria alguns dias detido. Não foi o que aconteceu. “É que o Alexandre de Moraes [ministro do STF] começou a dar ordens e não deixou liberar ninguém“, diz ela.
Hoje, a técnica de enfermagem só tem contato com o marido através do advogado. Ela diz que manda cartas e kit de higiene pessoal para ele, mas a correspondência não chega.
“O advogado disse que é porque lá está lotado e existem esses problemas. Fico preocupada porque tá cheio de gente perigosa na Papuda, e ele passando por uma situação difícil dessas. Meu marido está sendo tratado como um criminoso“, diz a mulher, que, mesmo depois da repercussão das prisões, ainda não se convenceu de que os atos antidemocráticos foram criminosos.
Marcos foi a único da cidade mineira a ser preso na ocasião, o que fez dele um assunto corriqueiro na vizinhança. Alguns, inclusive, perguntam por que Maria não o impediu. “Não tenho vergonha dele porque ele não é bandido. A Constituição fala que todo mundo tem direito de se manifestar. E eles estavam ali manifestando“, diz ela, que pondera que o direito à manifestação não inclui a depredação. “Meu marido e a maioria dos presos não estavam no quebra-quebra“.
O homem, que trabalhava fazendo bicos como camelô e capinando quintal, deixou em casa a mulher e as duas filhas de 2 e 3 anos. Maria conta que a situação financeira da família piorou desde que ele foi preso e às vezes ela não tem com quem deixar as crianças, que até hoje perguntam pelo pai. “Elas não entendem ainda. Só digo que ele está viajando em Brasília. Quando ele sair de lá, a gente vai tentar dar um jeito de explicar“.
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